segunda-feira, 19 de março de 2007

A lucidez perigosa segundo Clarice

A lucidez extrema é sempre perigosa...

É entrever no vazio a realidade assombrosa.



A lucidez perigosa

(Clarice Lispector)

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.
Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes.

Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Estamira e sua "lucidez perigosa"

“Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade... Capturar a mentira e jogar na cara. Ensinar a eles o que eles não sabem.”

“Não tem mais inocente... Tem esperto ao contrário.”

“O espaço inteiro é abstrato. O que se vê lá em cima é só reflexo do que está aqui embaixo.”

“Que Deus é esse? Não é ele que é o próprio ‘trocadilo’? Ele e sua quadrilha...”

“A Terra falava, agora ela tá morta. A morte é dona de tudo”

“ Todos os homens têm que ser iguais, tem que ser comunistas... tem que ter ‘igualidade’.”

“Tudo o que é imaginário tem, existe, é.”

Essas são apenas algumas das brilhantes frases de Estamira, que assim se define, em sua forma de sangue e carne: “Eu sou ‘formato homem par’, que são as ‘mãe’... ” Sua carne e seu sangue são indefesos, não sua “áurea”. Formato homem par e formato homem ímpar, assim ela define os gêneros feminino e masculino. Uma louca? Não, muito pelo contrário, extremamente lúcida, consciente, ciente. Lucidez perigosa...

Ouvindo tais maravilhas saídas da boca de uma mulher tão simples, como imaginá-la uma doente mental? Como julgá-la “possuída pelo demônio”? Pois se ela é, de fato, como diz, a visão de cada um? Sim, sua missão é revelar a verdade, uma verdade que a maioria prefere não ver nem ouvir. Capturar a mentira e a hipocrisia e tacá-las na cara, e não ser capturada por elas. Ensinar aos formatos homens pares e ímpares aquilo que desaprenderam. Estamira não precisa de um Deus que fale por ela. Estamira tem voz própria, ela é a própria deusa, a Deusa da Anunciação. E ela incomoda, incomoda muito.

As palavras contundentes de Estamira, carregadas de uma brutal lucidez (a lucidez perigosa de que fala Clarice Lispector!), são insuportáveis para o ser comum, aprisionado e amedrontado, agarrado a seus dogmas, a suas ficções, a suas mentiras. Porque ela, Estamira, não é comum, isso ela faz questão de frisar. Aponta os filhos, dizendo: “Eles são comuns, eu não!” Claro que querem calar a boca dessa mulher. Afinal, quantos suportam ver a sua mediocridade e a sua covardia reveladas por uma mulher como Estamira? Como ousa uma mulher como ela cuspir na cara tantas verdades intoleráveis? Por isso precisam dopá-la, “acalmá-la”, tirar-lhe o excesso de energia vital que transborda por seus poros, que jorra pela sua boca.

Estamira, mais do que “profeta”, é uma filósofa sem nunca ter tido aula ou lido um texto de filosofia. No entanto, ela é Nietzsche, é Zaratustra... anuncia a morte de Deus, a morte da Terra, a morte do próprio formato homem par e ímpar, cria conceitos filosóficos. O conhecimento de Estamira é totalmente intuitivo; ela não foi à escola “copiar” como diz, denunciando a hipocrisia do ensino, que na maior parte das vezes ensina a reproduzir, não a criar, como ela faz.

Estamira se diz má, mas não perversa. Sim, ela tem a “maldade” da crueldade necessária de quem diz aquilo que deve ser dito. Ela tem a “maldade” dos que não são cordeiros passivos de um rebanho, acuado, medroso; dos que não se submetem à ordem estabelecida, seja ela religiosa ou moral. Estamira é generosa, não quer nada para si, não quer fazer mal a ninguém; diz gostar de ajudar as pessoas. Chega a ser cômico ouvir sua filha dizer que ela é meio louca, “não é 100%”, embora confesse, em outro momento, ficar perturbada com algumas coisas que a mãe diz, coisas que para ela parecem ter um fundo de verdade. Ao menos, ela intui que existe algo ali... Ao contrário de seu irmão, castrado por uma “fé” cegante que o deixa impermeável às palavras de Estamira. Para se proteger contra as perigosas “heresias” ditas pela mãe “possuída”, ele recita febrilmente citações da Bíblia. Quem é o louco nessa história?

Estamira não é perturbada, ela é, sim, perturbadora, subversiva, criadora. É alguém capaz de gerar vida, poesia e pensamento mesmo em meio ao lixo. Ela é possuída, sim, mas por uma força da natureza, por uma potência de vida transbordante que não pode ser contida. Na loucura de sua lucidez ou na lucidez de sua loucura, Estamira diz coisas assombrosas. Uma “maluca-beleza”, como Raul Seixas: “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual, eu do meu lado aprendendo a ser louco, um maluco total, na loucura real, controlando a minha maluquez, misturada com a minha lucidez...”.
É ao mesmo surpreendente e enternecedor descobrir Estamira, uma estrela tão brilhante, uma potência de vida tão afirmativa e de tamanha intensidade. Ela é a prova da imanência, da existência virtual e abstrata além da carne, além do sangue, além das formas, dos formatos. “Além dos ‘além’, para onde sangüíneo nenhum pode ir”...

Mas ela avisa: “Vocês não vão entender de uma só vez”.

Estamira chega a causar um certo constrangimento em nós outros, formatos homens pares e ímpares mais “comuns”.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Sem promessas este ano

Sem promessas este ano
nada de listas, nada de planos
sem enganos
nem meias verdades nem mentiras inteiras
apenas realidades passageiras
nada de juras ou conjecturas
só intensidades puras

(Ah, eu prefiro seres amórficos
do aqueles sujeitos organizados
– metodicamente –
em tópicos)

Sem simpatias, sem rituais
tampouco palavras levianas ou gestos triviais
nada de banalidades ou formalidades
só um seguir
um devir
sem começo, sem meio e sem fim
Mas nada prometo...
muito menos que será assim!

quarta-feira, 14 de março de 2007

Surge a manhã de um novo dia...

Surge a manhã de um novo dia,
de um novo ano...

"O último dia do ano não é o último dia do tempo"...

Assim como o primeiro dia do ano também não é o primeiro...
E já se passaram janeiro e fevereiro.


Passagem do ano

(Carlos Drummond de Andrade)

"O último dia do ano não é o último dia do tempo.
Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.

O último dia do tempo não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos. Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer. O recurso de se embriagar. O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas. O corpo gasto renova-se em espuma. Todos os sentidos alerta funcionam. A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida. A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia."